9.11.05

Calçadas da fome

Tem coisas que a gente vê e que chocam mesmo. Apesar delas estarem cada vez mais rotineiras. Muitos fazem de conta que não vêem, outros disfarçam, olham para o outro lado, mas a verdade é que a miséria, a pobreza e a violência (esse trio tenebroso) estão cada vez mais à vista nos grandes centros, reflexo de uma política em que se cultua a ignorância.

Não estou me isentando do rol dos indiferentes, acho que poderia fazer bem mais por essa gente, nossa gente, que por falta de oportunidades, na maioria das vezes lhes roubadas antes mesmo do nascimento, não conseguem (nem poderiam) um prumo na vida. A mesma vida onde a sociedade os empurra para baixo, e os olha sim, para poder pisar melhor, constituindo uma pirâmide íngreme, pontiaguda e com paredes antiaderentes.

Dois fatos chamaram minha atenção ontem à noite, quando voltava do trabalho: o primeiro ocorreu assim que virei a primeira esquina. Deparei-me com uma cena que mais parecia uma representação em carvão sobre tela de Gil Vicente. Uma mulher negra, mendigando, sentada no chão, escorada em belíssima parede de mármore e granito. Ao seu lado, como que postos por algum fotógrafo profissional que compusera a cena em estúdio, uma caixa de fósforos, cuidadosamente deixada entreaberta, com três palitos de pé em cima da mesma, inclinados para manter o equilíbrio, um pouco mais à esquerda da caixa, estava uma carteira de cigarros, daquela tipo box, também com três cigarros de pé, imprensados pela tampa, por fim, uma lata de aguardente de cana à sua frente (presumo que já estivesse vazia). Retratada a cena, vamos ao fato: incrivelmente bêbada – cheguei a esta conclusão porque não entendera nada do que dissera, – a mulher discursava veementemente para aqueles objetos inanimados, apesar de que, pelo estado alcoólico da mesma, devia achar que os palitos e os cigarros estivessem fazendo alguma anarquia, creio.

Passada a estranheza que a cena causou, fica a indignação pela situação de um semelhante. Como um ser humano pode chegar ao seu limite, e às vezes, ultrapassá-lo? A mulher não devia ter mais de 25 anos e já não tem perspectiva nenhuma nessa vida, enquanto os homens que poderiam fazer algo em grande escala para combater esse tipo de desgraça social, só pensam em autopromoção, eleições e poder.

O outro fato da noite aconteceu quando eu já estava chegando ao estacionamento, em frente ao teatro Santa Isabel no centro do Recife: uma senhora de 65 anos, mais ou menos, com sua neta, me aborda e pergunta qual a direção de Aguazinha (bairro da periferia que fica a uns 17 ou 20 Km do centro). Entendi que ela queria saber da localização da parada de ônibus e, prontamente apontei para a Av. Dantas Barreto, corredor de tráfego no centro, lá, com certeza passaria seu transporte. Ela respondeu o seguinte: –“Não meu filho! Eu vou andando mesmo”. – Perguntei o porquê desta marcha atlética às sete da noite e com uma criança à tiracolo? Ela respondeu que não tinha condições de andar de ônibus e pôs-se a caminhar em direção à Av. Norte. A chamei e dei o dinheiro da passagem. Posso até ter caído no “velho golpe da esmola disfarçada”, como diria Maxwell Smart, se caí valeu pela criatividade, e se não, pelo amparo.

Os dois casos nos deixam cada vez mais desiludidos com a política brasileira, e o pior, ano que vem tem eleição de novo... em quem votar?

2 comentários:

Márcia disse...

parabéns pela iniciativa de construir um blog,um espaço onde,tenho certeza,vai realizar seus sonhos além de fazer amigos...
sobre seu post,não mais darei meu voto a nenhum político,não sou favorável a voto nulo,porém impossivel achar que esse caos é normal..me recuso!!
linda noite e boa sorte na blogosfera!!!
beijossssssssssss

Ban disse...

Desculpa por dizer isso mas de todo esse post fantástico o que mais me chamou a atenção foi a cena da Sra Negra sobre a parede de mármore.
É que sou fascinada por fotografias essa imagem me pareceu surpeendentemente chocante.

Bem, nao posso negar que os palitos anarquistas tb são fantásticos!