30.11.05

Analisar poesia é descrer no amor

Acabo de ler uma análise sobre uma poesia de Drummond... não costumo fazer isso, e agora tentarei não mais fazê-lo. Não acreditei que eram acadêmicos a deferir tais observações, pareciam estar resolvendo uma equação bi-quadrática exponencial à derivada reversa, tais eram as minúcias que decifravam nas linhas do poeta, que, ao meu ver, só queria dizer, naquele instante, que seu coração assumira o controle cerebral e soprara palavras doces, diria até desleixadas, porém puras e sinceras.

Outro dia um amigo que é um estudioso da cultura popular, principalmente da literatura de cordel, disse-me que escrevi um “causo”, na verdade uma peleja, em sextilha, que é uma das formas de classificação dos cordéis. Eu lhe disse que nunca havia lido sobre isso e que se escrevi assim, foi pura sorte! Obviamente não estou comparando minha peleja amadora com nenhuma poesia de Drummond, nem de ninguém, mas, se eu com meu ínfimo conhecimento sobre “escrituras”, consegui relatar algo que chamou a atenção de um estudioso, imagine o que esses caras que nascem com o dom não conseguem?

Prefiro continuar acreditando que os poetas e “escribas” em geral, deixam fluir do amor (a pessoas, lugares ou ao trabalho e etc.) seus textos, e que as métricas encontradas pelos “especialistas”, são meras coincidências, criadas pela forma carinhosa com que escreveram.

P.S.: o que importa não é a análise, e sim a reação que elas causam, especialmente em quem as lê, e identifica passagens de sua vida, ou até a vida inteira..

29.11.05

Demissão sumariamente Real

Eu vi a raiva estampada nos olhos do dono da empresa, quando soube que sua funcionária estava grávida. Era como se tivesse perdido muito dinheiro investindo em ações que caíram vertiginosamente, como se a gravidez fosse premeditada, com o único objetivo de “roubar” sua fortuna, usufruindo a licença maternidade durante quatro meses. “Quatro meses só mamando”, – bradava. Parecia que pouco importavam a competência e os anos de dedicação ao trabalho que tanto elogiava outrora, principalmente quando suas ações geravam lucro.

Ponto crucial do fato acima, o lucro é o fator que move as empresas em uma sociedade capitalista, e mudar a concepção de toda uma sociedade não é tarefa fácil e não depende de vontades individuais, é claro! O que contesto são determinados gestores, que foram absorvidos pelo raciocínio monetário, onde as reações humanas frente a fatos delicados, são usurpadas e substituídas por ganância e poder.

Só para citar um exemplo da negatividade da cena, imagine a carga que esta criança começa a carregar, antes mesmo de nascer, apesar de ter sido uma gravidez desejada pelos pais, presumo ter sido esta sua primeira rejeição, e logo pelo pior motivo que existe para tal repúdio: o econômico. Será que não passou pela cabeça do chefe, que aquele devia ser um momento de alegria intensa, um acontecimento mágico, a criação de uma vida. Dessas mesmas vidas que garantem a perpetuação da espécie humana... “ops!” Acaba de me ocorrer um insight! O cara não deve ser humano... basta conversar com ele por cinco minutos para perceber sua personalidade racista e preconceituosa. Senti uma verdade absurda nas piadas que contou sobre negros e mulheres, como se os castigos aplicados o fizessem chegar a um estado qualquer de êxtase... como esperar reações humanas de quem coloca o dinheiro à frente da razão?

Tenho certeza que ele a demitirá assim que regressar da sua licença, como se ficar grávida fosse a maior das insubordinações. Em contrapartida, também sei que ela encontrará um emprego bem melhor, com gente bem melhor por perto e que criará seu filho com toda competência que lhe é peculiar.

E, quanto a mim, diante das injustiças demonstradas, só tenho três palavras para dizer ao chefe:

– Eu me demito!

28.11.05

Volta

Já que não tenho mais asas pra voar,
Já que o sol não brilha por aqui
E o silêncio do íntimo em que me encontro
Ensurdece meu pouco sonhar,
Refletindo tua ausência em meu vazio.

No que antes, contigo aqui,
Era oásis, era conforto,
Causava inveja ao mais puro coração.
Tornava leve o meu dia mais sombrio.
Deixava-me ser o que nasci pra ser.

Agora, peço-te.
Agora, rogo a ti.
Porque não vivo mais.
Por quê os ventos não sopram como antes?
Eu sei. Tento esconder.

Talvez eles te tragam pra cá,
Talvez só me deixem te ver.
Encontro-me como um louco
Que vê a alegria escapar...
Que vê seu ser padecer.

24.11.05

Desencontro provocado: desfecho

- Marcos, eu te disse que estava casada. Quando você foi fazer aquele curso na escola de cinema, quase fico louca de saudade, mas achei que foi melhor mesmo a gente acabar. Savino me consolou muito e terminei me apaixonando, casamos mas não tenho filhos...

- Simone, eu lembro que quando soube da notícia quase tenho um treco. Queria voltar e te dizer o que sentia, mas não tava com condições pra isso...

Bom, o papo foi se alongando, se alongando e quando deram por conta já passava das 18 horas. Resolveram assistir a um filme qualquer. Na verdade o filme não era importante, e sim o cinema em si... algumas paixões, antigas ou não, nos deixam assim: sem preocupações com os olhares dos transeuntes, ou sem medo de encontrar algum conhecido. Parece até que temos o plug-in da invisibilidade e que nada nos tira a concentração do rosto do outro. Pois bem, após o filme Marcos insistiu para esticarem o encontro, num lugar mais reservado, óbvio. Mas Simone foi intransigente e disse que não trairia seu marido, apesar da vida conjugal estar atribulada. Se despediram e trocaram telefones.

A essa altura, Savino e Juliana já haviam descoberto milhares de pontos em comum nas suas trajetórias amorosas. Seus anseios e suas decepções, suas dúvidas e, como alguns têm coragem para terminar relações e outros apenas postergam decisões. Mas não era só uma boa conversa que agradara Savino, nem a beleza diferente e hipnotizadora de Juliana, algo mexeu com o seu íntimo, se sentia bem ao lado dela, como se a tranqüilidade que seu coração não encontrara em anos de busca estivesse ao alcance. E o que é melhor: Juliana lhe dera todos os motivos para acreditar que ela também estava sentindo o mesmo...

Savino levou Juliana para casa, que por sinal era uma contra-mão incrível, mas ele nem se incomodou, pelo contrário, queria até que fosse mais longe só para passar mais tempo com ela, os dois também trocaram telefones e se despediram com um beijo no rosto.

Quando voltou pra casa, Simone já o esperava com uma pizza para o jantar e com o seu presente de natal na mão. O natal seria dali a alguns dias, o que causou uma certa estranheza em Savino, mas, como de costume, a beijou e não fez perguntas sobre o seu dia... já Simone:

- Oi Savino, e aí? Me conta como foi a pelada, muita gente?

- É Simone, muita gente. Perdemos de novo, mas a farra não durou muito, não!

- Não durou e você só chegou agora, hein? Imagine se estivesse bom?

- Simone, precisamos conversar sobre a nossa situação aqui em casa. Há algum tempo que a gente só faz brigar e isso não é muito bom para a relação...

- Oi! Não era você quem não discutia relação? O que foi que houve que, de uma hora pra outra, seu pensamento virou 180 graus?

- Andei conversando com Juliana, lembra dela? Era a namorada de Matheus, lembra?
- Sim, lembro. Soube que eles acabaram, o que tem ela... vocês “ficaram” na pelada!?

- Não Simone! Quer dizer, ficamos conversando. Foi um papo muito legal e eu queria que você me dissesse o que deseja da nossa união? Se sua intenção é estar casada comigo até envelhecermos? Porque eu acho que se já estamos com essa falta de diálogo hoje, imagine quando estivermos passando dos cinqüenta? Por enquanto ainda há tempo de ser feliz...

- Bem Savino, eu tava com seu presente na mão para lhe entregar... sei que ainda não é natal, mas queria conversar justamente isso com você, discutir a relação, mas não sabia como começar a conversa, porque você vivia dizendo que não fazia isso! Também encontrei alguém no shopping, Marcos...

- Aquele seu namorado?

- É... almoçamos juntos e depois fomos ao cinema. Ficamos de nos falar pra ver o que essa conversa, que eu iria propor, reservou...

- Pois é Simone, você também sente como eu, que nossa estória acabou, e que seremos mais felizes separados?

- Também acho isso Savino. Nós somos independentes financeiramente, temos nossas vidas muito diferentes e não temos filhos, talvez possamos ficar amigos e, quem sabe, sair com nossos novos amores, não é?

- É.

E assim Savino e Simone realizaram a separação mais amigável e mais rápida que eu tenho notícia. Sem mágoa, sem rancor, sem ressentimento. Hoje, eles vivem em perfeita harmonia com seus novos cônjuges e até já têm filhos...

Essa é uma “obra” de ficção. Na vida real as pessoas se anulam, se batem e debatem, não tomam atitudes que fariam suas vidas serem como sonharam, por imposições da sociedade ou por medo de si mesmos. E quando tomam, geralmente o litígio já está declarado. A coragem, que é na verdade a grande força que realiza as maiores transformações em nossas vidas... ah, a coragem!!!

P.S.: Savino e Simone não são reais, mas eu conheço pelo menos uma dúzia de casais que não se tratam com respeito e que poderiam começar a mudar conversando sobre isso...

23.11.05

Desencontro provocado

- Como assim inadiável? E eu? Você não se importa com o que eu sinto? Quero ver quando eu criar coragem, Savino... se eu crio coragem eu te deixo! Não me venha mendigar carinho depois!

- Simone, deixa de drama! Não entra nessa de discutir relação! É só a última pelada do ano e é de dia... o que pode acontecer de mais? Todas as esposas vão. Por quê você não fica “boazinha” e vem comigo?

- Não Savino! Não vou perder meu sábado, véspera de natal, pra assistir um bando de marmanjos correndo atrás de uma bola. Conheço bem essas peladas, depois tem o chope pra comemorar a vitória ou pra chorar a derrota. A gente vai terminar chegando em casa à noite, cansados e sem tempo de fazer as compras. Vou pro shopping!

E lá se foram... Savino para a pelada e Simone às compras. Mal sabiam que aquele fim de semana reservara mudanças radicais para as suas vidas, essas coisas que têm que acontecer a todo custo, e as circunstâncias ainda corroboram para isso. Até parece que tem alguém “arranjando” todas as coincidências possíveis, a tal “conspiração universal”.

No futebol não houve novidade! O time de Savino perdeu mais uma, “pra variar”! E também “pra variar”, Simone estava certa: rolou uns chopinhos no final da partida, claro!

Do outro lado da cidade, no shopping, depois de comprar tudo que é de presente para a famíia e para os amigos secretos de todos, bate aquela fome e ela vai almoçar na praça de alimentação, como de costume.

No clube de campo já não se tinha contagem certa para os litros de chope que consumiram... muita alegria e descontração, exceto em Savino, que naquele momento se afastara um pouco da farra e sentara em um banquinho perto do lago pra pensar na vida, e se, realmente, era essa vida que ele queria para “sempre” (parece muito tempo, mas quando se trata de felicidade, o sempre é o quão longe o amor e seus limites podem nos levar).

Juliana, amiga de todos, acabara de terminar um relacionamento de cinco anos, e só foi à festa porque as amigas insistiram muito. Ela sempre se sentiu atraída por Savino, mas, por ele ser casado e ela comprometida, nunca havia tentado uma aproximação, até aquele dia, quando o viu só e triste na beira do lago. Naquele instante, projeções à velocidade da luz se fizeram em sua mente, como quem descobrira a relação ideal, a “outra metade” que fora encontrada. Aproximou-se dele, e perguntou o que estava havendo, que não era “aquele” Savino que ela conhecia e que queria sua alegria de volta. Savino não falou nada sobre seus problemas em casa, e de como estava difícil a vida de casado. Falaram sobre o dia, sobre os amigos, as alegrias, até que a sua própria voltou, não sabia muito bem do porquê, mas aquela conversa com Juliana lhe fizera muito bem, tanto que a chamou para comer uma pizza e continuar o papo.

No outro lado da cidade e da estória, Simone já esperava seu pedido: frango à Kiev, como de costume, ela era fixa nas preferências e assim como Savino, sempre comia naquele restaurante quando ia ao shopping. Até que enfim, chamaram seu número, e quando se aproximava do guichê, uma mão segura sua cabeça, tapando seus olhos, e uma voz que não era estranha lhe pedira para adivinhar quem era.

- Marcos, há quanto tempo! Como está lá em Cuba, me conta tudo, seu trabalho, sua família, você casou?

- Oi Simone! Não, não casei, na verdade voltei para saber como você está, como anda essa cabecinha que eu tanto amei, e que até hoje não saiu da minha...

continua

21.11.05

Caçadores de almas

Vi uma entrevista com Chico Buarque, onde ele se declarava um inquieto curioso sobre a alma feminina, sempre buscando decifrá-la, deglutí-la, absorvê-la. Isso é retratado claramente em diversas de suas canções, onde ele consegue encontrar, creio, com muitas dessas almas que afirma procurar.

Não ouso dizer que sou seguidor desses passos tão elevados. Conheço minha improbabilidade de atingir tal estágio de contemplação, e não conseguiria descrever os objetos de tal admiração tão bem, usando minhas palavras insípidas. Prefiro manter-me em meu canto, apenas convivendo com esse universo rico e invisível aos meus olhos de aprendiz. Quanto às almas, as sinto. Consigo até acompanhar seus cheiros, sem nunca tocá-las. Há algum tempo pensei ter conseguido o tão desejado contato, mas agora se esvaiu, e já nem tenho certeza se houve tal afago.

Talvez a complexidade do universo feminino exista para não permitir que o decifrem, tal revelação seria devastadora e catastrófica, inclusive para o diminuto e simplório ‘nano-universo’ masculino. Sem seus mistérios, todos os homens se igualariam na busca pela, hoje, inalcançável plenitude do ser mais perfeito do planeta, a mulher, tornando banal conquistas impensáveis ou obras de vidas inteiras, dedicadas ao melhor dos ‘passatempos’, o amor.

No caso de Chico, quando indagado se as mulheres de suas músicas seriam reais, respondeu prontamente, para a minha completa surpresa:

– “eu as inventei”.

Como “inventar” sentimentos tão profundos e, às vezes, contundentes? Como transcender o corpo para adentrar em mentes de outrem, principalmente quando essas mentes não existem! É esse é o segredo da genialidade? Como falar por Genis, Beatrizes, Carolinas e pelas que ‘olham nos olhos’, sem conhecê-las, “apenas” inventando-as? E tantas outras que foram despejadas, como se amasse quinhentas vezes, cada uma com mais intensidade.

Para mim, bastam a observação e o cheiro...

18.11.05

Idas

E quando eu juro que consegui

Você me vem

Mais forte e dominante

Mais sufocante e intensa

Como metáforas prum poeta

Como breu pras mãos suadas

E a vida será assim

Como o mar sem ondas

E é de dar dó essa serenidade

De não crer nessa demência

Porque quando o sorriso se esvai

Com ele se vão os sonhos

E o que me move agora

É a certeza de que serás feliz

Que não pensarás em mim

E nem me amarás

E nem viverás

Quanto a mim:

Só observo o silêncio

Só lembro de nós

Só morro

17.11.05

Terapia matinal

Já estou beirando os trinta e cinco anos, e ainda hoje me surpreendo com coisas que acontecem desde os tempos de criança. Agora a pouco aconteceu um... como direi? “Acidente de percurso” no banheiro, que, após algumas divagações e análises, ocorreu-me que podem ser coisas desse tipo a causa de centenas, ou até de milhares de separações que ocorrem anualmente, entre casais comuns.

Nós homens temos, talvez, o privilégio de fazer algumas das necessidades fisiológicas em pé mesmo. Pois é, disse talvez, porque a tal mijadinha rápida pode até ser prática, mas, para homens casados, e dependendo do nível de estresse da cônjuge, pode ser a tal gota d`água que transborda o limite da convivência pacífica, e acarreta desavença e desunião.

Pois bem mulheres leitoras, tentarei explicar o ocorrido com o maior zêlo, e peço que também compreendam seus maridos, visto que a culpa não é nossa. São motivos biológicos, mecânicos e “fósforo-dependentes”, no que diz respeito à memória, os fatores que causam o “efeito língua de cobra” na saída da primeira urina matinal, molhando não só a borda da bacia sanitária, como também sua tampa, o Box, o armário, o papel higiênico e, às vezes, nossos próprios pés.

Estudo proposto: nosso “bilau” é um músculo cavernoso, com um canal chamado uretra, que é responsável, entre outras coisas mais fecundas, pela eliminação da urina. Por ser composto basicamente de mucosa, o referido canal possui uma certa viscosidade natural que se acentua após uma longa noite de sono, devido ao “amassamento” sofrido pelo mesmo, que ficou às voltas entre o corpo e o colchão.

Estando expostos os fatores biológicos (composição) e mecânicos (compressão), vamos ao lapso cerebral que, se sanado, poderia evitar tais “acidentes”:

Defesa - o homem esquece mesmo. Outro dia eu fiz dezoito pontos no teste da memória do Fantástico (é... às vezes eu também assisto TV, perdão!), a tal sabatina classificava notas menores que oito como ideais, dez a menos que a minha, só não obtive uma pontuação maior porque esqueci de algumas perguntas.

Se nós, da “macheza”, fôssemos bons de lembranças, teríamos muito menos problemas por esquecer compromissos e aniversários, e em relação ao embate em questão, bastava lembrarmos de fazer alguns movimentos rotatórios no nosso “amigo sonolento”, como quem desamassa um canudinho de refrigerante, e pronto! O xixi seria expelido como um esguicho uniforme e direcionável, deixando o banheiro limpo, como deve ser.

Agora, sem atribuir-lhes culpa alguma, vocês mulheres também poderiam dar sua parcela de colaboração para que as relações conjugais sejam mais duráveis, pelo menos sob o mérito aqui debatido. Outro jeito interessante de “desentupir” o canal supra citado é o acordar com amor... sim, sexo nas primeiras horas da manhã pode evitar brigas por questões de ordem higiênica e separações, trazendo um excelente início de dia para o casal.

Dica: escovem os dentes.

P.S.: No final todos se ajudam e a relação dura... enquanto dura!

16.11.05

Inácio Mentira – Parte III: colação de grau

Sim, ele reapareceu. Dessa vez protagonizando uma das maiores farsas que eu tive conhecimento. Estávamos no período em que os amigos da turma estavam se formando. Uns com graduação em medicina, outros em jornalismo, mas a maioria estava cursando engenharia civil.

Alguns dos nossos amigos cursavam engenharia civil na Escola Politécnica, entre eles o meu primo, que era, talvez, o melhor amigo de Inácio. Geralmente nos encontrávamos na faculdade às sextas-feiras para cair na farra, foi lá que o avistamos, saindo de uma das aulas de cálculo estrutural, as piores aulas da Poli, e onde era mais intenso o cheiro de chifre queimado, devido ao alto nível de raciocínio exigido pelo professor. Espantados com sua presença nos corredores, gritamos:

– Inácio! Há quanto tempo, rapaz? Tás fazendo o quê por aqui?
– Pois é amigos, eu tava estudando na Inglaterra, comecei engenharia por lá, agora consegui transferência pra Poli. Tô fazendo Civil e termino em dois anos.

Achamos estranho o fato, já que Inácio saira do Brasil (se é que saiu mesmo?), apenas com a quinta série e tenha voltado cursando civil. Conversamos mais um pouco, colocamos o papo em dia, ele nos falou que estava esperando a namorada, também aluna da faculdade. Duvidamos dele e ficamos por perto observando-o. Até que uma bela garota se aproximou dele e o beijou. Ficamos boquiabertos! Não pelo beijo demorado, nem por ela ser bonita, com cabelos grandes e enrolados, nem tampouco pela boina da infantaria do exército que ela usava. Ficamos com o queixo tocando o esterno porque, depois de muitos anos de convivência, vimos Inácio falar uma verdade, ele tava namorando...

Nos aproximamos para confirmar com os ouvidos o que os olhos viram. Inácio foi, de pronto, apresentado a moça:

– Deixe-me apresentar minha Musa. Ela estuda aqui e vai se formar no mesmo período que eu. O pai dela é militar e quando nos casarmos ele vai ajudar na montagem da nossa própria construtora.

O mais incrível, apesar de estarmos incrédulos, foi que Musa confirmou tudo que Inácio disse e ainda acrescentou:

– É... meu pai já emprestou até um dinheiro pra gente alugar um escritório em Boa Viagem e começar a fazer alguns projetos, Júnior já tá tomando conta dessa parte burocrática.

Pobre menina! Nesse instante percebemos que ela já estava completamente embebida nas mentiras de Inácio, só não entendemos muito bem como ele conseguiu acesso à faculdade e como assistia às aulas. Aguçada a curiosidade, partimos em busca de contatos, amigos do casal na faculdade, que pudessem confirmar ou desmentir o fato. Além do mais, dessa vez Inácio fora longe demais, a menina era filha de militar, e pelo que nos consta, essa gente é metida a “cavalo do cão”, e alguns ao próprio “cão”.

Encontramos alguns amigos em comum entre ela e nossas namoradas, e passamos a sair em casais. Íamos a bares e restaurantes e criamos um vínculo de amizade interessante, o que nos possibilitou a descoberta das mais incríveis estórias sobre o namoro dos dois, não dá pra descrever todas, mas vamos a algumas delas:

Fato um – Sabíamos que Inácio não dirigia, e pensávamos que sua namorada também soubesse, por ela sempre vir guiando o carro do seu pai. Ledo engano, num desses jantares ela nos falou que “Júnior não dirigia, apesar de ter carteira, porque não gostava de pegar no carro dos outros, só iria dirigir quando comprasse o seu próprio carro, isso é tão nobre, não é?”.

Imaginamos o perigo que essa mentira representava: se de repente acontecesse algum problema e Inácio se visse obrigado a dirigir, como ele se explicaria, iria manter sua tese e só pilotar seu próprio carro, ou contar a verdade? Mais tarde descobrimos que ele arquitetara um plano para conseguir o dinheiro do seu próprio carro com o pai dela.

Fato dois – Como Inácio conseguia conteúdo para se passar por estudante de engenharia? Inclusive o víamos, freqüentemente, com um caderno repleto de cálculos, das mais diversas cadeiras, porém, nunca o vimos escrever nele. Como o atualizava? Musa dizia o seguinte:

– Nunca vi uma pessoa estudar tanto como Júnior, passamos vários finais de semana em casa, sem sair para lugar algum, e ele fica só lendo esse caderno.

Descobrimos que um amigo nosso, que realmente cursava a faculdade, emprestava seu caderno para Inácio, que prontamente o copiava. Soubemos também que ele ainda resolvia algumas das tarefas de Musa, que Inácio dizia que levaria pra casa por estar com dor de cabeça e resolveria a questão depois, quando a "dor" passasse.

Como não se pode viver mentindo pra sempre, a farsa acabou. Ao encontrarmos Musa em um determinado restaurante, não foi surpresa sua atitude para conosco. Sabíamos que um dia qualquer ela descobriria a verdade, só não imaginamos que seu nível de rancor e ódio se estenderia a nós, pobres co-vítimas do poder da não verdade. Ela gritou no meio do almoço:

– Vocês todos são cúmplices, sabiam que aquele filho da puta tava mentindo e mesmo assim acobertaram ele. Vocês são culpados também, e aposto que ele dividiu até o dinheiro que pediu emprestado ao meu pai, pra comprar o carro, com vocês. E quer saber mais? Não vou almoçar no mesmo lugar que vocês, safados.

Antes que pudéssemos perguntar qualquer coisa ou dar alguma explicação, ela saiu “cantando pneu” e nos deixou com cara de dançarina da can can que perde a saia no meio da apresentação. Sabíamos que isso poderia acontecer, mas nunca imaginamos que iria sobrar pra gente.

No outro dia fomos procurar Inácio para que ele esclarecesse o ocorrido. Chegamos na casa dele e sua mãe nos atendeu:

– Ah! Inácio foi para o interior, trabalhar numa obra. Tavam precisando de engenheiro e ele foi indicado pela faculdade.

Das duas uma: ou Inácio mentira também em casa sobre suas aventuras acadêmicas e profissionais, ou a falta da verdade na retórica era mal de família.

Ficamos sabendo por outras fontes, que Inácio havia fugido sim para um interior não divulgado, e que o pai de Musa tinha botado até detetive particular atrás dele, e, pelo que consta, se o pegasse não iria ser tão bonzinho, como costumava ser com seus recrutas do quartel...

Ficamos sem notícias do protagonista dessa série por mais de três anos, até que outro dia...

P.S.: "etâ historinha comprida!!!"

11.11.05

Inácio Mentira – Parte II: a profissionalização

Ele chegou com uma baixinha, ao qual a pouca estatura se acentuava pela proximidade com aquele ser agigantado. Era simpática a menina, já chegou sorrindo! E antes de ser apresentada já houvera apertado as mãos de todos da “roda”.

– “Essa é minha namorada: Carol”. – Disse Inácio, com uma ponta de orgulho, que escorria do alto dos seus 1,96 metros, talvez por estar acompanhado pela primeira vez em anos de convivência, e por ela ser bem afeiçoada.

Após a apresentação, como de costume, foi logo entrando na conversa: falávamos sobre as aulas de informática que aconteceriam como preparação para o concurso público da receita, e da minha escalação para o simuladão que aconteceria no domingo vindouro no Iteci. Já Fábio, que trabalhava no Interdata iria aplicar a prova na unidade de Boa Viagem. De repente Carol nos assombra com a seguinte declaração:

– “Júnior – como o chamava, também vai aplicar esta prova na Interdata da Boa Vista”.

Notícia que foi confirmada pelo próprio Inácio. Ora, sabíamos que o nosso amigo, aquele mesmo que não tinha intimidade nenhuma com a informática, não poderia, de uma hora para outra, ter sido contratado para dar aulas de iniciação à computação, e o próprio Fábio nunca o vira nas reuniões de instrutores da empresa. Tudo bem, pensamos. Quem nunca contou uma mentirinha para impressionar uma namoradinha? O pior é que ele mesmo, sem a presença dela, confirmou tudo conosco, e ainda disse que estava com cinco turmas, assoberbado de trabalho. Até brincamos que era um professor virtual, mas ele insistia que fora contratado após vários testes seletivos. Pois bem, brincamos o resto do dia e não o encontramos mais até o fim do carnaval.

Outro dia fomos convidados para um churrasco na casa de seu Ramos, pai de Dani, amiga muito querida por todos e muito desejada por alguns. Por ser um “grandão” da Volks, era “bombado”. A estrutura que dispunha nosso anfitrião para receber convidados era coisa de cinema. Foi a primeira vez que vimos uma churrasqueira elétrica rotatória com capacidade para mais de 300 asinhas e dez quilos de picanha simultaneamente. A casa parecia um hotel: sauna, jogos de salão, piscina com bar dentro, o que nos deixava à altura da figura mais procurada por todos nessas horas, Zé. Aquele caseiro “gente fina”, que em comemorações “atacava” de garçom.

Sentávamos nos banquinhos dentro da piscina, com água até o peito e pedíamos uma cerveja super gelada ao “bar-man” mais querido do evento: – "Zé, desce uma". – Ele, com a desobediência que lhe era peculiar, abria logo duas, das mais geladas ainda...

Confesso que tínhamos uma relativa timidez em relação ao excesso de mordomia. Todos, menos Inácio, que, penso eu, incorporava alguma entidade das elites antepassadas, e parecia um burguês com gestos finos e discurso nobre (como se não o conhecêssemos), principalmente na presença de sua namorada, a mesma do carnaval. Não sabíamos sequer o motivo da festa, pouco importava, estávamos à vontade na mesma mesa que a filha do dono. Ainda dava tempo de tocar violão, pois havia um verdadeiro palco com equipamentos de última geração e até jogo de luz.

Muita gente se confraternizava naquele dia, quando de repente instaura-se uma confusão vinda da piscina:

– “joguei mesmo! E jogo de novo nesse safado”.

Pelo adjetivo utilizado, já imaginávamos quem fora o pivô ro “rebuliço”.

– “esse safado, ladrão, corrupto mentiu pra mim e eu joguei o balde cheio de água na cabeça dele!”

Carol acabara de descobrir que seu namorado não era formado, não dava aula de informática e que, provavelmente, não iria pagar o dinheiro que pedira emprestado até receber o pagamento do curso. Quem disse tudo isso , o desmentindo perante seus tios, foi a sua prima, que por coincidência era ex-namorada do mesmo, e que caíra no mesmo golpe, só que a profissão que o malandro disse ter era de jogador de basquete do Português, e um dos únicos a receber salário...

Inácio, após se recompor do golpe desferido por Carol com o uso do balde disse:

– “Amor, ela deve estar me confundindo com alguém...”.

O bom mentiroso nega até a morte... e foi-se embora se lamentando e segurando sua posição até o fim. O namoro acabou e passamos mais alguns meses sem vê-lo, até que um dia...

continua...

10.11.05

Inácio Mentira – Parte I: o início

Há quem diga que ele é um mito, uma lenda. Há quem jure que tudo foi inventado, que ninguém teria uma mente tão inventiva e inebriante daquelas. Eu, como narrador, devo apenas repassar as histórias tal qual ocorreram, ou como dizem que ocorreram... quem sabe?

Apesar de possuir uma estatura digna dos gigantes da NBA, Inácio não conseguira se firmar em nenhum dos times de basquete das redondezas. Chegara a treinar como reserva em alguns deles, principalmente nos das escolas onde estudava. Cursou até a quinta série ginasial e, pelo que me consta nunca havia sequer ligado um computador, fato que causou estranheza nas situações que veremos mais adiante... por hora, relato que, apesar da pouca formação acadêmica, Inácio falava com destreza, utilizando um linguajar complexo e assustadoramente correto. Dizem que adquiriu essa desenvoltura por assistir muita TV e manter o hábito da leitura de jornais e revistas, especialmente nos assuntos sobre tecnologia e política, por isso, quando em conversas com os amigos, sempre estava atualizado, bem informado e com opinião formada sobre a maioria dos assuntos que surgiam.

Quando adolescentes, todos temos figuras ou heróis em quem nos inspiramos ou que nos identificamos. Lembro-me que alguns dos nossos amigos gostavam de jeito durão, descomprometido e de quem não leva desaforo pra casa de Wolverine (Marvel 1992), outros, como eu, apreciavam a coragem e o talento de Senna quando representava o país, que ainda hoje queremos vencedor, nas manhãs de domingo. Já Inácio, enaltecia um personagem de novela chamado Vidal, interpretado por Carlos Vereza, cujo o maior talento era ser mentor do galã da trama, onde arquitetava e implementava os planos mais mentirosos e anti-éticos que se possa imaginar. Costumava bradar em bom som:

– “Vidal é o meu ídolo”.

Depois de aplicar alguns pequenos golpes contra seus próprios amigos, tais como a obtenção de uma caixa de chocolate ou a isenção do pagamento de algumas contas de bar, entre outros, as mentiras, até então aturadas e até acobertadas por alguns colegas que sentiam pena, começaram a ficar preocupantes. Inácio, a esta altura já devia a quase toda a turma e as desculpas já estavam ficando escassas, visto que ele usava algumas delas para dois ou três amigos ao mesmo tempo.

Os problemas começaram pra valer, ou seja, as mentiras começaram a virar coisa de profissional, quando em um dos muitos carnavais que passávamos em grupo nas ladeiras de Olinda, ele nos apresentou sua namorada...

continua...

9.11.05

Calçadas da fome

Tem coisas que a gente vê e que chocam mesmo. Apesar delas estarem cada vez mais rotineiras. Muitos fazem de conta que não vêem, outros disfarçam, olham para o outro lado, mas a verdade é que a miséria, a pobreza e a violência (esse trio tenebroso) estão cada vez mais à vista nos grandes centros, reflexo de uma política em que se cultua a ignorância.

Não estou me isentando do rol dos indiferentes, acho que poderia fazer bem mais por essa gente, nossa gente, que por falta de oportunidades, na maioria das vezes lhes roubadas antes mesmo do nascimento, não conseguem (nem poderiam) um prumo na vida. A mesma vida onde a sociedade os empurra para baixo, e os olha sim, para poder pisar melhor, constituindo uma pirâmide íngreme, pontiaguda e com paredes antiaderentes.

Dois fatos chamaram minha atenção ontem à noite, quando voltava do trabalho: o primeiro ocorreu assim que virei a primeira esquina. Deparei-me com uma cena que mais parecia uma representação em carvão sobre tela de Gil Vicente. Uma mulher negra, mendigando, sentada no chão, escorada em belíssima parede de mármore e granito. Ao seu lado, como que postos por algum fotógrafo profissional que compusera a cena em estúdio, uma caixa de fósforos, cuidadosamente deixada entreaberta, com três palitos de pé em cima da mesma, inclinados para manter o equilíbrio, um pouco mais à esquerda da caixa, estava uma carteira de cigarros, daquela tipo box, também com três cigarros de pé, imprensados pela tampa, por fim, uma lata de aguardente de cana à sua frente (presumo que já estivesse vazia). Retratada a cena, vamos ao fato: incrivelmente bêbada – cheguei a esta conclusão porque não entendera nada do que dissera, – a mulher discursava veementemente para aqueles objetos inanimados, apesar de que, pelo estado alcoólico da mesma, devia achar que os palitos e os cigarros estivessem fazendo alguma anarquia, creio.

Passada a estranheza que a cena causou, fica a indignação pela situação de um semelhante. Como um ser humano pode chegar ao seu limite, e às vezes, ultrapassá-lo? A mulher não devia ter mais de 25 anos e já não tem perspectiva nenhuma nessa vida, enquanto os homens que poderiam fazer algo em grande escala para combater esse tipo de desgraça social, só pensam em autopromoção, eleições e poder.

O outro fato da noite aconteceu quando eu já estava chegando ao estacionamento, em frente ao teatro Santa Isabel no centro do Recife: uma senhora de 65 anos, mais ou menos, com sua neta, me aborda e pergunta qual a direção de Aguazinha (bairro da periferia que fica a uns 17 ou 20 Km do centro). Entendi que ela queria saber da localização da parada de ônibus e, prontamente apontei para a Av. Dantas Barreto, corredor de tráfego no centro, lá, com certeza passaria seu transporte. Ela respondeu o seguinte: –“Não meu filho! Eu vou andando mesmo”. – Perguntei o porquê desta marcha atlética às sete da noite e com uma criança à tiracolo? Ela respondeu que não tinha condições de andar de ônibus e pôs-se a caminhar em direção à Av. Norte. A chamei e dei o dinheiro da passagem. Posso até ter caído no “velho golpe da esmola disfarçada”, como diria Maxwell Smart, se caí valeu pela criatividade, e se não, pelo amparo.

Os dois casos nos deixam cada vez mais desiludidos com a política brasileira, e o pior, ano que vem tem eleição de novo... em quem votar?

8.11.05

Em nome da honra

Assistir a bons filmes pode nos proporcionar tanto crescimento quanto a leitura de bons livros. Talvez os meus amigos “cabeças” não pensem o mesmo que eu da sétima arte, até os entendo. Não aceito, mas entendo. Argumentam que filmes têm o “timing” acelerado, não deixando brechas para reflexões ou contestações, além de dizerem que a leitura proporciona um maior uso da imaginação e ampliação da bagagem cultural, blá, blá, blá... lendo, conseguimos voltar ao parágrafo anterior, confabular e discutir sobre o texto, o tempo que for necessário, buscando a aceitação ou a discordância sobre o que quis dizer o autor, bravejam.

Nos tempos modernos, aparelhos como DVDs ou filmes em arquivos digitais, nos deixam mais próximos do recurso “marcador de página”. Podemos assistir com pausa, rever a cena rapidamente e até ouvir os comentários do diretor. Para quem gosta de fotografia e trabalha com produções audiovisuais, como eu, é um “prato cheio”. Visualizamos detalhes que ajudam a enriquecer as idéias sobre vídeo digital.

Outro dia, assistindo ao filme Cruzada, deparei-me com inúmeras citações que Balian, personagem de Orlando Bloom, um homem que usou a razão e a honra para alcançar o discernimento correto, visando guiar suas ações; numa delas, dizia: – “...aprendi muito sobre religião com o senhor, bispo”. – O referido sacerdote, a despeito da sua função religiosa, humanitária acima de tudo (pelo menos na teoria), vendo que a batalha contra os muçulmanos já era dada como perdida, vez por outra incitava o nosso herói a bater em retirada de Jerusalém, deixando o povo à sua sorte: – “... vamos pegar o cavalo mais veloz e fugir...”, – bem ao estilo Leão da Montanha, pela direita.

A reflexão a que me referi no primeiro parágrafo seguiu-se instantaneamente. Citando um ditado popular que por aqui no Recife é muito usado: “bom no bom todo mundo é... quero ver é bom no ruim?”. Até (e, principalmente) nos dias de hoje, os homens que deveriam comandar seu povo, apaziguar turbulências, ou manter a calma, transmitindo-a para seu próximo, são apenas homens comuns, que revelam-se egoístas e covardes em horas indóceis, onde deveriam ser verdadeiros heróis, e quando falo de comando, não é só do político, mas também do religioso e até do familiar, já que os mais jovens precisam de exemplos honrados desde o berço.

P.S.: começou leve, terminou pesado, mas pelo menos foi curto.

7.11.05

Querido desencontro

No início eu nem estava querendo ir àquela farra, mas meus amigos insistiram, pintaram um quadro que mais parecia uma propaganda de cerveja: – “vai ter muita mulher, muita bebida, gente bonita e espírito de festa, vamos lá!”. – Apesar do estado “down”, postura cabisbaixa e aperto no peito, característicos de quem acabara de passar pelo que passei, resolvi dar uma chance a mim mesmo e me vesti para a ocasião. Traje nada especial: a camisa de sempre com emblema e lembranças de glórias e derrotas; e um par de sandálias de couro que comprei em Caruaru no último São João.

Chegamos e fomos logo entrando. Confesso que tive muito medo de encontrá-la, tal receio já estava fazendo parte das minhas saídas há algumas semanas. Idas a shoppings, cinemas, alguns poucos bares e até à bancas de jornal, já me levavam a estado de alerta, como se a possibilidade deste encontro fosse mais e mais iminente a cada esquina. Na verdade, do fundo do meu coração, era isso mesmo que desejava, secretamente, ardentemente, já não agüentava mais de tanta saudade. Apesar de termos ciência da real impossibilidade da nossa vida a dois, tantas vezes discutida.

Havia mais de cinqüenta mil pessoas no evento, muita gente, muita animação. Encontrei alguns amigos em comum, mas sabia que estava a exatos 180 graus dela. Costumávamos ficar perto da saída principal, do lado da rua das Moças, era lá que tocava a Sanfona Coral. Se estivéssemos juntos, por certo estaria tocando triângulo e cantando as paródias corriqueiras.

A senti do outro lado, inerte, inatingível, procurando-me em meio a milhares de cadeiras ocupadas por gente com roupas tão parecidas, como que soubesse que eu estava lá. Sabíamos a posição exata, um a do outro, pois, antes da nossa união, sempre ficava na mesma cadeira, mania de fixação, sei lá, porém, àquela distância só dava para enxergar pontos coloridos do outro lado.

Entre um lance e outro, um dos amigos comentava: – “visse este drible?”, Eu respondia que sim, porém ainda estava a buscando, filtrando cada cor como quem lapida diamantes. Sabia da impossibilidade da definição do olhar, mas esperava que ao atingí-la, algo ocorresse, algum sinal, uma taquicardia, talvez. Nada aconteceu, no final não houve vitória, nem derrota, apenas um empate do meu time, que se encaixou perfeitamente na nossa situação: empatada; sem contato, nem ao menos o visual. Segundo suas próprias palavras: – “até o nosso próximo encontro, na provinciana Recife”. – Até agora ela tem se mostrado imensa, novaiorquina. Não foi dessa vez, e já nem sei se quero que o encontro ocorra, mas continuarei indo ao estádio observar os pontos coloridos e repensar a vida!

P.S.: Até quando se espera por calmaria, onde áreas receptoras de ventos são tão aparentes?

4.11.05

Antes das cenas - begins

Chegou com uma amiga, na verdade uma grande amiga que, além de segurar várias barras dela, e vice-versa, ainda era sócia na agência de comunicação que fundaram a custa de talento e coragem. Tudo isso só descobriu depois. Inclusive, compreendeu que algumas amizades verdadeiras são tão fortes, que, nem o amor ou o ódio podem fragmentá-las. Eram bonitas, jornalistas, por certo, inteligentes.

Não a conhecia, porém um amigo em comum que estava no bar a apresentou, agradeceu boa parte da sua existência a esse benfeitor. A turma era de comunicação: designers, jornalistas, produtores, videomakers, etc, do tipo “meio intelectual, meio de esquerda”, nunca antes havia experimentado aquela sensação de união entre amigos em um boteco, eles se gostavam mesmo, se cuidavam, sentiu dificuldade em ser aceito como integrante, parecia que faziam parte de uma confraria de velhos amigos de infância, sua sorte, naquela noite, foi conhecer aquela morena, quase índia, de cabelos longos e negros, com quem passou boa parte da noite conversando. Ela também gostou dele, de cara. Não diria que fora amor à primeira vista, mas o potencial para ser o maior amor de que se tem notícia estava estampado em seus rostos.

Mal sabiam que a partir daquele encontro, suas vidas dariam cambalhotas em torno dos seus eixos. Não dava para prever, apenas sentiram uma calma mútua, um sentimento de paz que suplantava o que estava fora do raio de ação dos seus sentidos, principalmente o olfato, que rebuscava na memória aquele cheiro incomum que exalava de suas bocas, imaginavam se o gosto pudesse ser igual. Ele apavorou-se por perceber que as horas passaram e que teria que deixá-la, o que de fato ocorreu.

No outro dia, o destino – sempre ele – preparou um daqueles sustos que costuma pregar... encontraram-se na festa da Caderno1, assessoria de um jornal da cidade. Gente bonita, chope à vontade, e muito, muito samba, que provocou a formação de rodas de dança no salão daquela casa antiga na rua do Bom Jesus, ponto turístico do Bairro do Recife, ela parecia deslizar no ar com tamanha leveza, que o hipnotizava, olharam-se, trocaram sorrisos e, numa das idas e vindas ao bar para reabastecer, ele segurou sua cintura e se ofereceu para pegar a “rodada”. Conversaram mais e, novamente, as horas avançaram e se despediram com olhar de quem quer ficar.

Só voltariam a se encontrar para começar a mais louca, conturbada, apavorante e deliciosa história de amor que se tem notícia...

P.S.: Amores são assim mesmo, displicentes e mágicos.

3.11.05

Cenas de um sonho – Parte I

O dia era quinta-feira e, naturalmente, haveria trabalho na sexta, porém, só agora isso lhe ocorre, de tão importante que seria a viagem dali a poucas horas. Nunca estivera em Tamandaré antes, sabia apenas que era para o lado sul, partiu como ave migratória que usa a bússola instintiva. Até sair das cidades que circundam a capital fora uma viagem tranqüila. Havia certeza no caminho e nas decisões tomadas há pouco, mesmo porque, há muito tempo tal atitude tivera sido prometida e agora, ratificada.

Não é sempre que se deixa coisas amadas para trás, sabia disto, não se imaginava sem suas presenças. Ao chegar à entrada de Ipojuca, onde se desdobram os caminhos para Gaibu e Porto de Galinhas, atingira o ponto mais distante da sua casa, até então alcançado. Dali em diante só contava com a sorte para bater seu novo e único objetivo, o amor.

A primeira providência divina fora tomada. Só sabia que seu destino era uma casa, e que esta ficava perto do hospital local, e mais nada. Providencialmente, como tudo que conspira em prol do amor, ouviu uma sirene e olhou no retrovisor, diminuiu a velocidade, a deixou passar, o que possibilitou a leitura das inscrições em sua lateral: - “Prefeitura Municipal de Tamandaré” -. A certeza de que estava fazendo a coisa certa cresceu, e seguiu a ambulância até chegar ao Hospital.

Agora só lhe restava fazer a surpresa que planejara com zêlo e carinho, estacionou na frente da guarita de segurança e ligou para a sua amada, uma, duas, dez vezes e... nada. Começava a se desesperar quando ouviu música, na verdade era aquele ritmo “bate-estaca” que o vento trazia da praia, estava acontecendo um festival e, supôs, que todos deviam estar lá, talvez por a música estar muito alta, ela não tenha ouvido o telefone tocar, pensou.

A providência “atacou” novamente, mal chegara na praia e já avistara seu grande amor em uma sorveteria modesta à beira mar. Ficou no meio da rua a olhando por alguns minutos, a acompanhavam três amigas, que disseram-lhe: - “aquele cara tá te olhando” -. Não estava de lentes, nem de óculos, mas, ao levantar a visão entrou em choque, sabia quem era, sabia da promessa que fez ao deixá-la ir, e começou a acreditar que suas vidas iriam se unir na harmonia que mereciam, correu, abraçou-o com as forças que ainda lhe restavam, beijou-o, com a mesma entrega que o havia beijado todas as vezes. Ali estavam certos de que nasceram um para o outro, como se fossem um só ser...

Continua.

1.11.05

Castigo de amor

A saudade é o maior dos castigos. Não a considero doença, mesmo estando enfermo em seus tentáculos virais, mesmo parecendo asmático, com dificuldade em respirar. Já não sei se o ar existe ou se só há lembranças de suspiros.

Não adianta dizer que vai passar... subterfugiando a esperança, que morreu. Os últimos também morrem, pior, sofrem para morrer e, quando morrem, não descansam como os outros, ainda a têm em seu espírito, se alimentando do que aqui, no plano terreno, chamam de amor.

Sentimento constante e agudo, não dá tréguas ao peito, não alivia sua dor. O corpo disfarça, se emociona, ri, mas todos os sentimentos ganham um resquício seu. Sempre após um sorriso ou um êxtase, ou seja lá o que for, a saudade aparece, se incrusta nos sentidos: o paladar fica aguçado, o olfato alerta, como quem diz – quero você aqui, vejo você aqui”, – as lágrimas vêm, o riso some e o mundo pára... para a saudade.