1.3.07

Translado de carnaval


Dirigir um táxi aos trinta anos não era lá o emprego dos meus sonhos, mas depois que perdi a firma para a burocracia e a inadimplência não tive outra alternativa. Comprei a “praça”, o carro e um dicionário de gírias e mensagens-código, aquelas do tipo ‘QAP’ ou ‘QRX’ que os operadores de rádio usam para se comunicar rapidamente. Também pudera, perdi quase um mês decorando os tais facilitadores da família do “câmbio”, e constatei que realmente se entende mais rapidamente por códigos.

Havia decidido não trabalhar no carnaval, afinal, era meu primeiro ano sem esposa, sem namorada, sem nem um cachorro pra botar ração. Mas as primeiras semanas de fevereiro haviam sido ingratas com o taxímetro, e ao final do período momesco a prestação do Corsa não iria aliviar na cobrança.

Passei o sábado trabalhando entre Recife e Olinda, levando e trazendo gente para o desfile do Galo. Acho que dos dois milhões de pessoas, um terço fez a “corrida” comigo. No domingo, o roteiro foi mais curto, levava e trazia gente do Shopping para o Recife Antigo.

Lá pelas cinco e meia da tarde, havia acabado de deixar uma família nas proximidades do Marco Zero (ponto que demarca as distâncias da Capital para as outras cidades do Estado), quando um homem que aparentava uns quarenta e poucos anos sentou no banco de trás, quase sem esperar que a família o deixasse. Tinha pensado em não pegar mais passageiros e aproveitar um pouco do carnaval, mas diante da pressa do cidadão não tive como dizer não.

– Para onde, chefe? – Até que o cara tinha um jeitão de chefe de quadrilha (que Deus me perdoe), daqueles que são o cérebro da ‘organização’, de feições brutas e olhos de poucos amigos.
– Várzea.

Pela rispidez no tom amargo da resposta, senti que aquela viagem não seria de muita conversa, e resolvi, por antecipação, ficar calado durante o percurso, a não ser, lógico, que ele puxasse o assunto.

Mal acabávamos de atravessar a ponte Duarte Coelho, quando ouvi um som estampido de baque, que não era grave como uma alfaia de maracatu, mas agudo e rápido como o estalar sincronizado das baquetas nas paradas da bateria. Olhei pro banco traseiro pra saber se o passageiro também tinha ouvido aquilo, mas ele não estava lá. Sumira, deixando-me sem entender o que aconteceu.

Ainda pensei em descer e procurá-lo, saber se estava tudo bem, enfim... mas resolvi ir mesmo pra casa, descansar, já que ainda trabalharia na segunda e não deixaria de me divertir na terça, último dia da folia.

Saí para trabalhar às 6h, como de costume, porém, estranhamente, já estava perto da hora do almoço e ainda não havia pego um único cliente. Não sei se foi exatamente isso que tirou minha fome, mas resolvi prosseguir até que alguém fizesse sinal para eu parar. Nada. Nenhum passageiro acenava pro meu táxi. Parei o carro e desci para verificar se eu tinha esquecido de colocar a lâmpada “táxi” em cima do mesmo. Estava lá!

Perto das vinte horas, o desespero já assolava meu habitáculo de metal. Eu não entendia como os milhares de transeuntes do carnaval não queriam entrar no meu táxi. Já tinha até visto o Marcão, com aquela ‘lata velha’ sem ar-condicionado angariar passageiros, e até Chico, que era cheio de pudores com a quantidade de passageiros, passou por mim com gente até “no teto”.

Já estava desistindo e voltando pra casa, inclusive com a luz “táxi” apagada, quando finalmente alguém estendeu a mão pra mim. Quase não acreditei. Confesso que olhei pro retrovisor pra ver se não vinha um ônibus atrás. Era o primeiro passageiro das últimas 16 horas, uma mulher alta, ruiva e linda, aparentando uns 35, no máximo. Aquelas sardas no seu nariz só serviam para realçar ainda mais sua “ruivice”.

– Boa noite, senhora?
– Boa noite Daniel, vamos para o lugar do sempre.

Como ela sabia meu nome? Que lugar era esse? Lugar do sempre, que estranho, geralmente se diz: lugar de sempre...

– Desculpe-me, de onde nós nos conhecemos?
– Eu o conheço desde o dia seu nascimento Daniel Teixera Ramos, quando o peguei e o desenlacei do cordão umbilical. E agora vim te encontrar face a face para te ajudar a encontrar o caminho de volta. Você o perdeu naquela noite de carnaval, quando aquele seu último passageiro o baleou na cabeça. Agora eu cheguei e tudo ficará como deve ser, Daniel... como deve ser!

P.S.: infelizmente essa não é uma obra de ficção. A violência anda de táxi... nas metrópoles mais populosas, e a nossa é a “mais rápida nesse trânsito assassino”.

Um comentário:

Anônimo disse...

Passei hoje por aquele lugar do taxista no Carnaval. Estranho, porque o coração apertou... Aí, lembrei logo da sua estória de Daniel. Ui!

B.B.