23.12.05

Telepatia natural

Desde cedo, muito cedo, acho que eu devia ter uns 11 ou 12 anos e cursar a 5ª ou 6ª série, algumas pessoas destacavam-se do restante dos colegas de escola, pelo simples fato da antevisão das mais diversas reações, uns dos outros; do poder telegráfico de um olhar, mesmo inconscientemente. Era como se soubéssemos o que o outro pensava, na exatidão dos sentimentos. Alguns desses amigos continuaram a fazer parte do meu convívio, por mais alguns anos, formamos até aquelas bandinhas de garagem e festivais.

Hoje, não os tenho mais por perto, por vários motivos: mudanças de residência e de vida, afastamento natural, rumos distintos e até mesmo a morte. Mas sempre encontrei amizades com essa peculiaridade, esse poder, quase telepático, de olhar e desvendar o pensamento! Geralmente é gente que diz logo de cara: gosto de você de graça! E eu também os digo isso. Talvez eu seja gente boa, ou talvez o destino tenha colocado esse povo “gigante” de coração no meu caminho mesmo.

Noutro dia, na livraria Imperatriz, encontrei sentado em uma dessas poltronas que botam pra gente ler orelhas, ou até mesmo o livro inteiro, se nos convir, um senhor que aparentava seus 68 anos, um tanto careca, como presume-se ser os que passaram por um número incontável de “aperreios” e preocupações na vida, porém, assustadoramente tenro. Sua serenidade chamou minha atenção, senti que o conhecia de algum lugar. Estranhamente já havia tido essas sensações antes, como se soubesse que sua índole se enquadrasse na descrição daqueles amigos espontâneos e sinceros, que gostam da gente “de graça”.

Encaminhava-me à seção de ficção quando passei por ele, compenetrado, lia o prefácio de um esguio livro de capa roxa. Eu não tinha a intenção de perturbá-lo, mesmo porque a sua expressão àquele instante, era de quem tentava destrinchar um trecho de digestão lenta, quando, subitamente, ele exclama:

– Metáforas!
– Desculpe, senhor?
– São as metáforas, meu jovem, que permitem a sublime expressão poética, sem culpa ou prepotência, principalmente quando a sua mensagem deve transcender os limites da comunicação tradicional, ou andar encoberta por cortinas de reflexos onde o seu conteúdo seja claro, para quem precisa dela.

Perguntei se ele era escritor, respondeu que sim, que havia escrito muitos livros, todos eles com poesias direcionadas à sua ideologia, seus amores e seus conceitos sobre como o mundo deveria ser. Com isso, conseguiu realizar grandes coisas na vida, verdadeiras revoluções, e até ganhar um Nobel de literatura.

A conversa estava tão boa, que não dei por conta da passagem rápida do tempo (tem vezes que parece haver uma bolha de Cronos em nossa volta, que não nos deixa perceber o quão rápido passa a vida, voam os momentos sublimes). Perguntei o seu nome, e se havia livros dele naquela livraria. Ele me levou à seção de poesias e apontou para uma prateleira recheada de pequenos livros de bolso, todos de um mesmo autor, Pablo Neruda.

Quando retornei a vista para o corredor, não achei mais sinal do poeta, ainda assustado com o “desaparecimento”, percorri os corredores à sua procura, sem sucesso. Então, perguntei ao segurança da loja se ele vira o homem que estava conversando comigo minutos antes, quando ele me disse o seguinte:

– Não amigo. O senhor estava sozinho, lendo aquele livro de capa roxa, sentado naquela poltrona... sozinho.

P.S.: Encontrei Neruda há pouco tempo, mas a vitalidade de seus escritos soou como um estampido seco em minha diminuta e limitada, porém apaixonada veia poética, que sente como “Se cada dia cai, dentro de cada noite, há um poço onde a claridade está presa.”
Citação de Pablo Neruda (Últimos Poemas).

Um comentário:

Laura_Diz disse...

Neruda é meu poeta preferido, amo os 20 poemas de amor e tantos outros. viu o filme" O carteiro e o poeta"? é tão lindo, comovente.
Obrigada pelas lindas palavras, para vc tbm muita paz e amor sempre.
bj laura